CONCEITO DE ESTADO: DESMISTIFICANDO OS MODELOS ARISTOTÉLICO, JUSNATURALISTA/HOBBESIANO, MARXISTA E NEOLIBERAL

CONCEITO DE ESTADO: DESMISTIFICANDO OS MODELOS ARISTOTÉLICO, JUSNATURALISTA/HOBBESIANO, MARXISTA E NEOLIBERAL


O Estado é objeto de discussão desde a antiguidade, intrigando pensadores, filósofos e políticos quanto à sua origem, natureza, formação e tentativas de apontar perspectivas evolutivas. 

Qualquer debate/reflexão que considere questões relativas à políticas públicas, irremediavelmente deverá discutir o que seja o Estado.

Esse emaranhado conceitual é produto de reflexões seculares de intensos debates e o Estado deve optar por um modelo conceitual.
Vou tentar apresentar uma síntese dos principais conceitos/visões de filósofos e pensadores que, ao longo do tempo, detiveram-se sobre a problemática do Estado.

Autores contemporâneos como Gruppi (Tudo Começou com Maquiavel,1996), Bobbio e Bovero (Estado e Sociedade na Filosofia Política Moderna, 1996) discutem as principais abordagens conceituais de Estado, agrupando os respectivos pensadores em pelo menos três modelos conceituais de Estado, quais sejam: o modelo aristotélico, o modelo jusnaturalista/hobbesiano e o modelo marxista.

No aristotélico, inspirado na obra do filósofo Aristóteles (A Política), Estado seria um produto de uma evolução natural da humanidade, que passou das “formas mais primitivas até as mais evoluídas de sociedade, chegando a sociedade perfeita que seria o Estado”. 

É natural a participação do homem nele pois a origem foi na “família, que é a forma mais primitiva de sociedade, passa-se para a aldeia, que é a união de mais de uma família até chegar à cidade e assim sucessivamente”, até evoluir para a forma de Estado atual.
O modelo aristotélico foi suplantado pelo modelo jusnaturalista/hobbesiano, inspirado fundamentalmente em Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rosseau, além de contribuições de Emanuel Kant, Spinoza, Grocio, Punderfot, dentre outros.

Embora com algumas discordâncias (v.g. Rosseau x Hobbes), é uma visão racionalista, fruto de pacto entre os membros da sociedade que legitimam o poder dado a um soberano para governá-los, protegendo os seus interesses com paz e harmonia, tirando-os de um estado de natureza para alçá-lo a um Estado Civil. 

O modelo Marxista, construído a partir das contribuições de Karl Marx, Engels e Gramsci, apresenta o Estado como sendo o produto de uma luta de classes na sociedade, em que a classe dominante (burguesia) vê seus interesses representados e promovidos em detrimento da classe operária espoliada. 

A compreensão dos três modelos é fundamental para se entender os desdobramentos e a natureza das ações empreendidas pelo Estado porque é patente a influência de qualquer um dos modelos no pensamento humano atual. 

O modelo aristotélico é pano de fundo para a compreendermos a noção de Estado na antiguidade clássica e feudal, permeado por elementos transcendentais - ora mitológicos, ora religiosos - identificando a origem do Estado na família. Adviria de algum evento mitológico ou religioso e que, naturalmente, teria evoluído para a forma atual, “orientado” por divindades na terra (os reis absolutos) com poder divino, advindo daí a pretensa legitimidade de seus poderes.

Se o modelo aristotélico transferia a legitimidade do poder terreno às instâncias divinas e pouco deixando a se discutir pelos simples mortais, o jusnaturalismo contrapõe questionando essa pretensa legitimidade do poder instituído, atingindo um dos pilares fundantes da sociedade medieval: a igreja católica com seu poder secular.

O jusnaturalismo adquiriu ressonância junto à classe burguesa que emergiu econômica e politicamente (séc. XVII) para ser a protagonista histórica da implementação de um novo modelo de processo produtivo e base da futura sociedade capitalista. 

Ao pensar o Estado como um defensor da propriedade, instituindo a igualdade formal, a obrigação da obediência a um poder central, por exemplo, criam-se alicerces para que os interesses burgueses, especialmente aqueles vinculados aos seus interesses econômicos, sejam concretizados e adquiram perenidade. 

Já o modelo marxista é fruto das implicações e contradições sociais causadas pela sociedade capitalista já em meados do século XIX. As tão prometidas prosperidade e paz social apregoadas pelo movimento iluminista e absorvida pelo discurso da classe burguesa - que já havia se tornado (na maioria dos Estados) a classe dominante - não se realizou e tal classe lutava agora para se manter no poder.

Logo, teve que se contrapor aos constantes focos de contestações que não paravam de crescer no seio de uma sociedade desigual. O modelo marxista revela-se como um movimento também de denúncia das contradições daquela sociedade. 

Desta feita, aquele Estado é produto de uma ferrenha luta de classes que sempre marcou a história humana. O Estado também não seria um ente imparcial, um mero árbitro dos conflitos sociais. Pelo contrário, ele surge e representa uma ordem (social, econômica, política e jurídica) que responde aos interesses da classe dominante (burguesa nesse momento).

 As características definidoras desse Estado seriam dadas por suas estruturas econômicas que por sua vez definem o caráter das lutas de classes. Esses aspectos gerais emanados pelas obras de Marx e Engels sofreram ponderações e essencialmente ratificações pelas obras de vários autores, dentre os quais destaco Lênin e Gramsci.

Feita esta discussão inicial e para entrar na conceituação de políticas públicas utilizarei dois autores: do ponto de vista da luta de classes, Claus Offe; do ponto de vista liberal, Milton Friedmam.

Claus Offe, sociólogo alemão, trabalhou como assistente de Habermas e apesar de não ser precisamente marxista, algumas de suas análises utilizam a perspectiva da luta de classes, principalmente quando analisa a ação do Estado e o novo “Pacto Social”. Propõe a participação do Estado como agente de mudanças e melhoria de vida. 

Milton Friedmam foi o pai do Neoliberalismo. Suas ideias influenciaram a ação de vários governos. Defende o Estado Mínimo, onde o mercado deva regular a promoção do bem-estar.

Com efeito, as políticas públicas devem ser entendidas dentro de um contexto histórico, pois são implementadas pelo Estado com o objetivo de reproduzir as relações sociais dominantes. Políticas públicas significam “o Estado em ação [...] implantando um projeto de governo, através de programas, de ações voltadas para setores específicos da sociedade” (Hofling, 2001). 

A discussão sobre Estado é importante para compreender os principais modelos/visões abordados por diversos pensadores/filósofos, a fim de tentar elucidar o caráter assumido contemporaneamente, para então servir de sustentação à explicação das razões pelas quais se desenvolvem políticas públicas. 

Assim, o problema a ser elucidado seria: quais as principais visões sobre o Estado e como se revela na atual realidade mundial e brasileira?

A temática do Estado é exigência/alicerce de qualquer debate/reflexão que se queira fazer sobre a realidade contemporânea, dada importância do Estado na vida das pessoas no mundo de hoje. Não é possível entender a realidade de qualquer povo ou nação sem analisar o papel do Estado para sua conformação. 

Portanto, o resgate histórico dos principais modelos explicativos do Estado e suas inter-relações assume importância imperiosa para a compreensão de nossa realidade, com a complexidade que ela exige e de como se revelam na atual conjuntura mundial e brasileira, para colocar luz sobre uma realidade extrema e diversamente complexa como é a dos Estados hodiernos, em especial o Brasileiro.

É ilusória a visão/modelo de que o Estado na atualidade seja constituído por uma única e específica influência. Ao contrário, é possível perceber a presença de aspectos oriundos de diversas origens. 

Assim, por exemplo, elementos marxistas convivem com elementos do pensamento weberiano ou mesmo do modelo jusnaturalista, sem falar na influência e mesma gênese em que se constitui o pensamento jusnaturalista para os modelos neoliberais.

Isso é imprescindível para qualquer um que queira minimamente compreender o Estado contemporâneo e refletir sobre o caráter e a natureza das políticas públicas desenvolvidas nos governos vigentes.

Para Rosseau, o estado de natureza é histórico e real, existiu de fato e não é pior do que o seu desdobramento: a sociedade civil. Sustenta que os homens migraram por um falso convencimento: prometeram a paz e a igualdade social que não se configurou. Daí conclui que é ilegítimo o poder oriundo desse pacto que os homens firmaram imbuídos daquele falso convencimento.

Já Hobbes, ao contrário, acreditava que o estado de natureza era uma realidade bem pior do que o estado civil, onde os homens seriam sim livres, mas sem limites, cada um com “amor de si”, defendendo seus próprios interesses sem segurança, posto que todos temiam as ações de todos. 

Portanto, o surgimento do Estado teria sido uma decisão racional dos seres humanos, que concordaram em abrir mão de sua liberdade, para assegurar a paz social e se constituir em uma realidade bem melhor do que do estado de natureza.

Locke não possuía uma visão tão aterradora quanto Hobbes sobre o estado de natureza, julgando mesmo que os homens viviam bem e livres. Contudo, sentiram necessidade de evoluírem ainda mais e aceitaram impor limites à sua liberdade, desde que isso servisse para conservar a sua maior conquista – a propriedade.

O pensamento jusnaturalista ao enfatizar sua racionalidade, ao defender um estado civil mais adequado aos anseios humanos e a necessidade de sua legitimidade, estará com isso constituindo as bases fundantes da nova sociedade capitalista embrionária naquele momento histórico. 

O modelo marxista representa uma significativa evolução de uma “veia” de pensamento que vinha gestando-se no seio da sociedade burguesa, já mesmo com Rosseau e por pensadores que começam a denunciar as mazelas da sociedade burguesa capitalista.

Deve-se ressaltar que embora Marx não tenha escrito uma obra específica sobre o Estado, é possível abstrair sua compreensão sobre a questão em seus questionamentos feitos a Hegel, bem como em trechos de sua teoria da economia política e ainda de seus escritos históricos. 

Hegel separa o Estado da sociedade civil, sendo aquele fundamento desta (e da própria família), afirma que a sociedade civil é fenômeno do Estado (depende deste) e é distinto de sociedade política (estado), sendo aquele o fundante desta (ao contrário do que pensava Rosseau). 

Já para Marx, o Estado é consequência da sociedade civil e esta é que é a realidade essencial, sendo moldado pela realidade econômica/material. No entanto, considera que o Estado não é mero reflexo da economia, teria função de equilíbrio social, desempenhando papéis próprios, posto que a sociedade ainda não estaria preparada para autogerir-se 

O Estado é também percebido por Marx como o aparelho repressor da burguesia, com vistas a manter a ordem social vigente e assim não representar obstáculo a que os interesses burgueses tornem-se efetivos.

Outro importante pensador do modelo marxista - o mais vilipendiado -  é Antonio Gramsci. Embora partindo das ideias originais de Karl Marx, empreende algumas reformulações e revisões em alguns de seus aspectos. 

Um dos conceitos fundamentais no pensamento de Gramsci é o de hegemonia, constituindo-se num controle/direção exercido por via moral e intelectual, de uma parte da classe dominante sobre outras para posteriormente impô-la à classe dominada, como uma visão de mundo abrangente e universal.

Gramsci defende o uso fundamental da ideologia (no seio da sociedade) visando o consenso social e que por meio do uso da força (no âmbito do Estado) se consegue a submissão da sociedade ao projeto e que a junção de ambas constituiria a hegemonia. 

A influência do pensamento marxista é marcante nas questões relativas ao Estado na atualidade. As ideias contidas originalmente em Marx e em seguida reelaboradas por Gramsci (e mesmo Lênin, Offe e tantos outros) estão presentes de maneira imperativa em todas as instâncias da academia e nas pautas dos movimentos sociais.

Felizmente, a esquerda no Brasil não teve êxito nas experiências que tentou implementar de maneira explícita com a assunção ao poder, emprestando a política de Estado do bem-estar social que se transformou num arremedo populista e depois chafurdou no lodo de um lamaçal de corrupção de níveis estratosféricos. 

Já os neoliberais alçados ao Governo do Brasil procuram desconstruir o Estado sob a ótica do discurso da liberdade e do individualismo, louvando a supremacia do mercado para solucionar as ineficiências de alocação produzidas pelo Estado de Bem-Estar Keynesiano.

Combatem o gigantismo do Estado que emperra a mobilidade do capital e dentro desta lógica do Estado Mínimo proliferam agências reguladoras, o “desmonte” da previdência e do serviço público. Fala-se até em desmantelamento do ensino superior, mas particularmente não entendo assim, porque são correções de rumos de uma política de ensino calcada em ideologia questionável na práxis. 

Ora, se o governo de direita fomenta mais engenheiros imprescindíveis para o setor produtivo e menos cientistas sociais ou se o governo facilita mais cursos de medicina para eliminar a dependência dos médicos “pés descalços” de Cuba, para mim não é desmonte, senão novas diretrizes educacionais adequadas ao momento social.

Nessa discussão toda, não se olvide que Estado Brasileiro é marcado por heranças, como a colonial, a escravocrata e a latifundiária, que até hoje fomentam problemas profundos que as políticas públicas não têm conseguido amenizar a contento. Jogar isso no colo da direita é falacioso, é demagogia pura.

Mas até quando a sociedade brasileira será desigual? A desigualdade material acaba sendo mistificada pela desigualdade de direitos sociais, que também mascara a luta de classes. Não podemos relegar às populações pobres arremedos de políticas compensatórias que apenas alimentam o mínimo de sobrevivência. A melhor bolsa-auxílio é e sempre foi um emprego decente.

A conclusão inequívoca é que as políticas sociais, saúde, educação, previdência social, emprego “et coetera”, tudo isso constituiu objetivos e valores inteiramente secundários no Brasil, subordinados à lógica dominante que sempre regeu a sociedade brasileira.
Podemos mudar? Sim! Depende de nós, exclusivamente de nós... Regimes anacrônicos, atraso, cinismo, hipocrisia, corrupção e burrice das suas elites são corrigíveis nas urnas! 

Ah! Antes que eu esqueça, lembrem-se da lição de Eça de Queiroz: “Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos pelo mesmo motivo”.


Dr. Adilson Garcia

Dr. Adilson Garcia

Fórum Íntimo – professor doutor em Direito pela PUC- -SP, advogado e promotor de justiça aposentado.



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