O DESAFIO DA TECNOLOGIA

O DESAFIO DA TECNOLOGIA


Vimos que o desafio da ciência é gerar conhecimentos para o maior número possível de problemas relativos à vida humana associada. Isso significa que é preciso avançar tanto em quantidade de partes da realidade a serem explicadas quanto na seleção de aspectos relevantes para a manutenção da vida e sua consequente melhoria. A finalidade da ciência é justamente explicar, desvendar os esquemas lógicos existentes e que ainda não são conhecidos sobre como funciona a realidade em seus múltiplos aspectos. O desafio da tecnologia está associado ao desafio da ciência e pode ser traduzido em termos da materialização da manutenção da vida e sua melhoria contínua. Metaforicamente, a ciência é o facho de luz que permite ver com mais adequação os pormenores das coisas; é como uma superexpansão da sensibilidade humana. A tecnologia é o conjunto de esquemas lógicos capazes de traduzir o que a ciência vê em artefatos físicos e extrafísicos que permitam lidar com as adversidades do mundo e da vida.

A tecnologia é o encapsulamento de conhecimentos em algum artefato para que possa ser manuseado. Advém dessa definição conceitual a operacionalidade necessária para a expansão tecnológica para dar conta de grande parte dos desafios da humanidade envolve o desenvolvimento de habilidades e esquemas passíveis de permitir outras formas de encapsulamento. Isso quer dizer, primeiro, que o estoque de conhecimentos científicos ainda é tímido e insuficiente para dar conta de todos os meandros das realidades que precisamos modificar ou aprender a conviver. Como esse estoque é limitado, é necessário que os cientistas se coloquem o desafio de gerar tecnologias baseadas nesses estoques limitados. É preciso, portanto, desenvolver tecnologias que permitam a geração de artefatos a partir de conhecimentos reduzidos.

Tome-se o caso de crianças que precisam ser alfabetizadas e que tenham limitações físicas nos membros superiores. O estoque de conhecimentos disponíveis para casos como esses é limitado. Mas sabe-se que há conhecimentos de outras áreas que, aparentemente, nada têm a ver com essas situações e que podem ser direcionados para elas aumentando o foco de luz dos conhecimentos específicos disponíveis. Os conhecimentos pedagógicos e instrucionais limitados, quando reforçados por conhecimentos de áreas distantes, ganham novos contornos e potencialidades de solução, o que colabora em muito com a produção de esquemas lógicos, algoritmos, essenciais para o surgimento de tecnologias. Assim, o estoque limitado de conhecimentos pode deixar de ser um problema a partir de uma visão múltipla de conhecimentos, que é uma das características do método científico-tecnológico.

O segundo aspecto do desafio da tecnologia é o desenvolvimento de habilidades que permitam transformar esquemas explicativos da realidade (conhecimentos, científicos e de outros tipos) em artefatos. O núcleo desse aspecto é a carência de um roteiro mínimo, confiável e válido capaz de ser seguido para a produção tecnológica. De forma comparativa com o método científico, cujo roteiro parece ter se consolidado nas diversas comunidades científicas, é preciso um método tecnológico, com as etapas minimamente definidas, que manuseie conhecimentos e os transforme em artefatos. Enquanto roteiro mínimo, precisa ser capaz de ser seguido tanto para a produção de novos medicamentos quanto para a elaboração de um novo mecanismo de redução da pobreza; que seja capaz de transformar conhecimentos de diferentes áreas, harmonizando-os, acoplando-os e aparando as desconformidades para a geração de artefatos voltados para aplicações específicas.

Para enfrentar esse segundo aspecto, ao que tudo indica, é necessária uma mudança de estratégia ante a formação humana. A prática cotidiana dos órgãos oficiais de educação, por exemplo, é ver as coisas de forma separadas. O corpo humano é tomado do ponto de vista exclusivo da química, assim como da física ou da biologia, enquanto outras visões particulares e isoladas o aprisionam em visões sociológicas, filosóficas, gerenciais, médicas, espirituais e assim por diante. E é dessa forma, como consequência, que os conhecimentos aparecem: isolados, desvinculados da realidade. O trabalho dos cientistas da tecnologia é árduo porque precisa refazer as vinculações, harmonizações, acoplamentos, o mais próximo possível da realidade. O método científico-tecnológico é um roteiro de reacoplamento do que estava desacoplado, reunião do que estava isolado, harmonização do que estava desarmonizado. Como resultado, seus artefatos apresentam menos consequências nocivas do que os produzidos a partir de recortes isolados da realidade. É necessária, portanto, uma mentalidade holográfica do mundo de maneira que os estoques limitados de conhecimentos possam permitir inferências para o todo. Como cada visão isolada representa de alguma forma o todo daquela visão, o reacoplamento permite uma aproximação da totalidade.

Dessa forma, o desafio da tecnologia pode ser sintetizado assim: fazer mais com o mínimo existente ou aumentar o estoque de conhecimentos e de tecnologias para expandir a capacidade de produção de tecnologias. Fazer mais com o mínimo depende de um método potencialmente capaz para isso, através de tecnologias robustas que permitam acoplar conhecimentos de áreas distintas e distantes para um foco comum. À medida em que avança na geração das tecnologias que se dispuser a gerar, o método também produzirá conhecimentos autorrefletidos, ou seja, saberes que aperfeiçoam a prática realizada transformada em artefatos. Isso leva a novos conhecimentos em um círculo virtuoso tão desejado traduzido em termos de conhecimentos que geram artefatos que renovam conhecimentos.

O método científico-tecnológico se presta justamente a esse mister. É capaz de produzir tecnologias autorrefletidas. E age da seguinte maneira: a) identifica necessidades de tecnologia das realidades do mundo, b) reúne conhecimentos de diversas áreas, próximas e distantes, c) identifica lacunas nesse acoplamento, d) produz os conhecimentos faltantes para finalizar o acoplamento, e) permite a confecção de protótipos tão detalhados quanto uma estrutura analítica de produtos o faz, f) organiza e orienta a realização de testes para a detectação de falhas nos protótipos, g) guia e ordena os ajustes nos protótipos em busca das conformidades desejadas e h) oportuniza aos demandantes de tecnologia o artefato capaz de solucionar seus problemas.


Dr. Daniel Nascimento e Silva

Dr. Daniel Nascimento e Silva

PhD, Professor e Pesquisador do Instituto Federal do Amazonas (IFAM)



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