COLETA DE DADOS NÃO ESTRUTURADOS
Daniel Nascimento-e-Silva, PhD
Professor e Pesquisador do Instituto Federal do Amazonas (IFAM)
A realidade é profícua nos desafios que coloca aos seres humanos. À medida que o tempo avança, novas realidades vão aparecem em substituição às que teimam se perpetuar. Essa dinâmica exige dos pesquisadores e cientistas não apenas capacidade perceptiva, mas fundamentalmente novos arranjos cognitivos capazes de dar conta de seus meandros e cadeias relacionais. E muitas delas são simplesmente incompreensíveis, insondáveis, no primeiro momento. Isso quer dizer que no momento em que aparecem os profissionais das investigações não têm a mínima ideia do que esteja acontecendo e tampouco do que seja aquilo que promove as mudanças nas realidades. É preciso, portanto, primeiro ter contato com o novo fenômeno para que depois se possa começar o esforço de apreendê-lo, tanto conceitual, quanto operacionalmente. Muitas vezes é necessário, por exemplo, inventar um nome para essa coisa nova e para as suas partes, todas desconhecidas, pelo menos nesse primeiro momento desafiador. É justamente para casos parecidos, inusitados, que utilizamos os esquema de coleta de dados não estruturados.
Se os dados estruturados são aqueles em que o pesquisador sabe o que quer saber e também todas as respostas possíveis para cada aspecto da real, os dados não estruturados são o oposto desse continuum. Nesses casos eles não sabem sequer como começar a investigação. Sabem que alguma coisa está acontecendo. Em sua mente está o longo caminho que vai do desconhecimento quase completo à futura esquematização do fenômeno, sua delimitação, identificação de suas partes e das diferentes maneiras de constatação empírica. É esse futuro que muitas vezes orientam cada pergunta é feita, cada prenúncio de esquematização. Tomemos um exemplo caricaturado para efeito de compreensão da dificuldade de ensinar a lidar com esses fenômenos inusitados.
Imagine que em determinada sala de aula, de uma hora para outra, os alunos se tornem gênios. A cada vez que novos alunos adentram aquela sala, novos gênios são feitos. Os pesquisadores e as comunidades científicas desse campo e campos correlatos ficam assombrados, no sentido pleno do termo. O assombro é decorrente do conhecimento que os cientistas têm acerca dos inúmeros desafios que o aprendizado tem para se constituir e se solidificar. Tanto é assim que dezenas de campos científicos existem para dar conta do fenômeno. E, no entanto, de uma hora para outra, o impossível acontece: parece que basta adentrar aquela determinada sala de aula que o conhecimento pleno de tudo se enraíza nas pessoas.
A primeira etapa do método científico está ali presente: o assombro, a constatação de algo que ainda não tem uma explicação plausível. Mas e a segunda etapa, que é a formulação da hipótese ou pergunta de pesquisa principal, como fazê-la, se não há esquema lógico possível para tal? Pesquisadores há que agem de forma parecida com o que acontece com os psicanalistas, prática efetiva de lidar com o não estruturado. Eles perguntam aos analisandos “Diga alguma coisa”. Esse solicitação é como um anzol que fisga uma pequena parte do inconsciente. E como o inconsciente está estruturado como uma linguagem, como explica Lacan, um parte se liga a outra e ao todo.
De fato, parece que, nesses casos, a primeira coisa é tentar entender alguma coisa relativa ao que está acontecendo. Esta seria a primeira pergunta: o que está acontecendo aqui? E a cada pequena parte de resposta encontrada, uma nova pergunta é formulada sobre ela. “Basta pisar no solo que ficamos gênios”, poderia ter dito um aluno. “Então é o solo o responsável pela genialidade?”, poderia se indagar o cientista, elaborando uma primeira proposta de hipótese. E a cada resposta positiva ou negativa, novas e novas questões são formuladas e hipóteses são testadas. Tem-se a impressão de que se está retirando as camadas de uma cebola para entender o que está no centro dela causando todos os acontecimentos. E assim se procede até que todo o enredo daquele fenômeno esteja razoavelmente desvendado e passível de ser comparado com o estoque de conhecimentos científicos disponíveis.
Note que o procedimento científico normal é começar com o levantamento da literatura e avançar para os estudos empíricos. O levantamento da literatura tem a finalidade de mostrar aos cientistas o que já se sabe sobre determinado fenômeno. O levantamento empírico é duplo: primeiro, confirmar o que já se sabe e, segundo, ampliar ou retificar a explicação existente. Mas com os estudos não estruturados o “normal” parece ser o contrário: busca-se entender o que está acontecendo e, a partir desse entendimento, vincular a explicação auferida com o estoque de conhecimento disponível. Se isso não for possível, abre-se novo campo de conhecimento e procuram-se as conexões com os campos existentes, uma vez que tudo está ligado com alguma coisa. É preciso muita acurácia, vivacidade e paciência para a realização dos estudos não estruturados. Principalmente paciência, uma vez que essas investigações podem levar um horizonte de tempo extremamente longo.
Geralmente há uma inversão das questões de pesquisa em relação aos estudos não estruturados. A questão conceitual, geralmente a primeira nos estudos estruturados e semiestruturados, tende a ser a última a ser respondida, sob a ótica da finalidade de geração de tecnologia (no nosso exemplo, reproduzir a produção da genialidade para outras salas de aula e ambientes). As questões estruturais ou processuais tendem a ser as primeiras, seguidas das funcionais, relacionais e ambientais, não necessariamente nessa ordem. O fato, contudo, é que as investigações não estruturadas têm o incrível poder de transformar o mundo, como foi o caso da descoberta da penicilina e da teoria da relatividade.