Naquela época

Naquela época


“Houve uma época em que “Deus-feito-homem” custava as galés ou as minas de sal por toda a vida. O nome de Jesus Cristo bastava para nos condenarem à morte. Naquela época, não se gravava o crucifixo nas etiquetas de vinho da Espanha. Cuidava-se muito daquilo que se dizia. Houve uma época em que o nome de Jesus Cristo não somente fazia virar a cabeça, mas tinha um tal poder explosivo que fazia a vida dar uma volta completa. Denomina-se isso conversão. Era dinamite. Não se tomava o nome de Jesus, na época, entre um uísque duplo e uma taça de champanhe. Ele era cochichado nas cavernas dos bairros pobres de Corinto, no fundo das masmorras de Roma, sob os desvãos dos portos de Antioquia. O nome de Jesus fazia brilhar os olhos. Ele tinha os ossos à mostra, pegava tifo nos conveses de escravos, tinha a barba mal feita, cheirava a suor, a um odor de imigrado...e, ao mesmo tempo, em nome de Jesus, a ralé aprendia que o seu nome era para ela Homem-Filho de Deus-Dignidade. Jesus Cristo estava a tal ponto no interior do homem que era preciso dilacerar as entranhas se se quisesse arrancar Deus. Deus escandalizava.” (Jean Debruynne)

“Deus escandalizava”! São palavras fortes. Como é possível que “Deus” é este que questiona a maneira de viver dos “bem-pensantes”, incomoda a tranquilidade deles e, talvez, também a nossa? Para entender um pouco mais de qual “Deus” estamos falando, precisamos refletir sobre a página do evangelho deste Quarto Domingo do Tempo Comum. Proclamaremos as “Bem-aventuranças” de Mateus. As conhecemos tão bem que nem mais percebemos a novidade da pregação de Jesus. Ele diz exatamente o contrário daquilo que muitos de nós, declaradamente cristãos, pensamos e vivemos. Se acreditássemos mesmo que é possível ser “pobres” e ser felizes, talvez não gastaríamos tantas energias para acumular riquezas. Brigamos para ter uma vida cômoda e mansa. Ninguém deseja uma vida de aflições, de perseguições e injúrias. Nem Jesus, se lermos bem as bem-aventuranças. Os aflitos serão consolados, os que têm fome e sede de justiça serão saciados. Com as suas palavras, Jesus nos convoca a fazer a nossa parte no grande mutirão do Reino dos Céus. Não é Deus que faz chorar, que persegue, ou faz perder a pureza do coração e a confiança dos simples. Somos nós mesmos que fazemos as nossas guerras, que desprezamos os pequenos passando por cima dos direitos deles.

Por isso, devemos ser nós também que consertamos o mal que fazemos, os sofrimentos e as injustiças que causamos. Digo, ao menos nós que ousamos nos chamar de cristãos, seguidores daquele Mestre que enxugava lágrimas, curava os doentes, dava pão aos famintos, convidava a mudar de vida e a não pecar mais. “As bem-aventuranças” não são um discurso bonito e emocionante, são o compromisso e o modelo da vida do próprio Jesus. Ele mesmo se fez pobre, amigo dos sofredores, dos considerados inúteis e perdidos. Dele falaram mal, levantaram o falso, o condenaram como um malfeitor. Teve medo, suou sangue, mas não desistiu, foi até a cruz. Confiou no Pai e este o ressuscitou porque a verdadeira felicidade está em doar a própria vida por amor. Ainda hoje, quem tem a coragem de se colocar ao lado dos pequenos, dos excluídos, daqueles que não têm nem voz e nem vez, recebe críticas e corre o perigo de pagar com a vida a sua escolha. Jesus não teve medo de escandalizar. Ele perguntou se as suas palavras escandalizavam (Jo 6,61) e proclamou “bem-aventurados” aqueles que não se escandalizavam dele (Mt 11,6). Jesus avisou que os seus seguidores seriam injuriados e perseguidos e que também teriam escandalizado a muitos (Mt 24,10). Aplausos e elogios são reservados aos falsos profetas (Lc 6,26). Um pedido: se nós mesmos ainda não experimentamos as críticas e estamos bem acomodados na nossa vida cristã, tenhamos, ao menos, a bondade de não falar mal daqueles e daquelas que, por causa do Senhor, lutam em favor dos pobres, gritam contra as injustiças e pedem a paz. Fazer isso, sim, é um escândalo.



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