REDAÇÃO CIENTÍFICA: LACUNAS
Vimos que a ciência (e, consequentemente, toda redação científica) tem duas finalidades: expandir suas fronteiras e preencher suas lacunas. As formas mais tradicionais de expansão das fronteiras são fazer a conexão de teorias, campos teóricos, associar e relacionar o comportamento de um fenômeno a outro(s), como foi mostrado antes. E o preenchimento de lacunas, o que vem a ser? Aliás, o que é uma lacuna? Por incrível que pareça, a ideia de lacuna da ciência é praticamente a mesma da do senso comum (aquela que a gente encontra nos dicionários), que é a maneira como as pessoas que não são cientistas veem e percebem as coisas. Talvez seja essa extrema semelhança a causa das grandes confusões que impedem que a maioria dos pesquisadores sejam efetivamente cientistas. Eles fazem pesquisas, buscam preencher lacunas, mas como desconhecem a linguagem e as regras da ciência deixam escapar as oportunidades de fazerem colaborações importantes para o campo científico. Para que fiquem marcadas as distinções do imaginário do senso comum (e dos pesquisadores) para o que é efetivamente científico, vamos tomar três significações de lacuna para que se compreenda como a ciência procede para preenchê-la e como isso precisa estar marcado nas redações científicas.
Antes de começar, e com o perdão da redundância, a redação científica é uma comunicação que relata a comparação do que a ciência sabe com evidências empíricas. Daí vem a primeira percepção relativa a lacuna originária do senso comum: espaço vazio. Isso parece esquisito, mas busque pela sua memória de quantas vezes você pronunciou a palavra lacuna buscando levar a ideia de espaço vazio para as pessoas. Pode ser como na oração “Há uma lacuna entre a calçada e a rua”, em que lacuna é sinônimo de buraco. Essa lacuna precisa ser preenchida porque pode causar acidentes a pedestres ou a automóveis. Da mesma forma na ciência. Praticamente todas as vezes que se constrói uma explicação (assim como teóricas e campos teóricos) não se consegue dar conta de tudo, explicar todos os meandros da realidade.
Veja o caso das vacinas. Essas tecnologias (sim, vacina é um produto tecnológico) têm ajudado enormemente a elevar a longevidade de toda a população mundial. Além disso, tem livrado as pessoas de males terríveis que afligiram a humanidade por milênios. Sua importância e fundamentalidade são indiscutíveis. Contudo, ainda assim, as vacinas não conseguem ter a mesma eficácia para todas as pessoas. Ainda que sejam cada vez mais raros, há casos em que esses imunizantes chegam a matar as pessoas. Por mais que os cientistas tenham se esforçado, essa ainda é uma lacuna que precisa ser preenchida, ou seja, tem um espaço vazio esperando uma explicação do porquê não se consegue quase 100% de eficácia. (Veja que interessante: tudo o que for 100% eficaz já não seria científico. Para ser ciência, tem que ter variância)
Vamos à segunda percepção de lacuna do senso comum: falha. Uma falha seria um tipo de disfuncionamento. Traduzindo: falhar é não funcionar como o previsto. Se um jogador é exímio batedor de pênalti, ele geralmente vai fazer o gol quase todas as vezes que for chutar a bola. Quase todas as vezes. Nas vezes que ele não faz o gol, ele falha. Isso é óbvio. Mas por que ele não fez o gol nas vezes em que ele falhou? Os torcedores adversários podem colocar as explicações sobre o comportamento nobre do goleiro, enaltecendo-o, ou no comportamento pobre do chutador, zombando dele. Essas explicações são tentativas de preencher essa lacuna. A diferença é que a ciência tem um esquema lógico para as coisas que explica construído, às vezes, por milhares de cientistas, com o apoio de um método válido. Essa multidão de cientistas se coloca o desafio de tornar mais “perfeita” essas explicações de modo que elas possam ser confirmadas na prática. A cada vez que essa explicação falha, os cientistas investigam as causas dessa falha para aperfeiçoar, melhorar, enfim, evitar novas falhas e prever com mais acurácia o comportamento da realidade.
A terceira percepção é um pouco parecida com a primeira: a falta. A percepção do senso comum pode ser exemplificada na falta que uma pessoa faz, seja por falecimento ou por abandono, mas também no que uma pessoa não tem e de que sente falta. Para a ciência, a diferença entre o espaço vazio e a falta é que, neste último caso, o espaço já não é vazio, mas ainda falta muita coisa para o preenchimento de todo o espaço. De forma um tanto quanto simplificada, a falta é uma espécie de vazio em um espaço onde já há construções teóricas. É esse sempre o sentido interpretativo da ciência: o que falta para completar o seu estoque de conhecimentos sobre a realidade. Muitos campos teóricos, por exemplo, carecem de estudos de diferentes situações para aferir a eficácia de determinada vacina. Se foram vacinados apenas adultos de 21 a 50 anos, faltam estudos de 51 em diante e de 20 para baixo. Nesses casos, há falta, lacunas a serem preenchidas.
O que queremos mostrar com esses exemplos é que a redação científica é um enredo que começa com a demonstração de que há efetivamente uma lacuna e que essa lacuna foi efetivamente preenchida. A redação começa, na introdução, apontando a lacuna e as consequências que ela está trazendo, o que vai demonstrar a sua fundamentalidade. Em seguida, essa lacuna é detalhada na seção de revisão da literatura. Depois é detalhado o passo a passo seguido para o seu preenchimento. Em seguida são apresentadas as evidências do preenchimento e comparadas com o quadro teórico que demonstrou a existência da lacuna. A conclusão começa com a reafirmação do preenchimento, prossegue com as consequências do preenchimento e termina com a recontextualização teórica a partir da lacuna preenchida.
O preenchimento de lacunas é a forma mais usual de contribuição científica. Basta olhar periódicos científicos para constatar essa experiência. Contudo, isso não quer dizer que sua importância seja reduzida, em relação aos avanços de fronteiras. Pelo contrário, muitas vezes os avanços das teorias e campos teóricos só são possíveis devido justamente às lacunas preenchidas, que permitem a ligação com outras teorias, campos teóricos e a vinculação de novos elementos ao que já se sabe.