LIÇÃO DE TOLERÂNCIA
O mundo é uma construção coletiva. Exaltam-se benfeitores, inventores, líderes políticos, escritores e profetas. São esquecidos os que trabalham na sombra. Entretanto, a obra anônima de milhares suplanta em muito o acréscimo feito ao patrimônio humano pelo pequeno grupo das pessoas que são lembradas.
O mundo é uma construção permanente. As gerações se sucedem. Cada uma deixa sua contribuição ao acervo geral.
O mundo é um tecido talhado por diferentes aptidões e profissões. Não existe um trabalho mais importante que outro.
O mundo é uma sucessão de idades. Cada uma tem seu selo, cada uma imprime sua marca no mosaico da vida. Crianças, adolescentes, jovens, pessoas maduras e idosos – cada idade traz seu canto para a sinfonia universal.
O mundo é um conflito de opiniões. Ninguém é dono da verdade. De muitas fontes pode vir o bom conselho. Que se tenha ouvido magnânimo para receber e acolher as inspirações para o bem.
O mundo é feito de rupturas, mas também de convergências. Na travessia da vida é preciso que haja pontes.
O mundo é feito de confrontos, mas também de diálogos. Que haja mediadores capazes de suprimir aparentes abismos.
O mundo é feito de saudades, mas também de esperanças. Que haja sempre alma de criança para divisar o futuro.
O mundo requer presença, ação, cidadania. Que haja espaço para que todos falem, sugiram, somem.
Adquiri experiência para formular estes conceitos, no desenrolar da vida. Mas a semente de tudo começou numa cidade e os leitores entenderão a seguir a relação das idéias aqui colocadas.
Fui a minha terra para celebrar com Davi Cruz e Wilson Lopes de Rezende o “Dia de Cachoeiro”. Recebi um banho de poesia, naquele pedaço de chão abençoado. A página que escrevo hoje, inspirada na “alma cachoeirense”, não pode ser senão uma página dirigida à sensibilidade.
A pedido do Prefeito, discursei, brevemente, junto ao busto de Newton Braga, o criador da Festa.
Falei a meus conterrâneos e aos amigos de Cachoeiro presentes ao ato sobre a “singularidade” de nosso torrão. Com muita pertinência, nós o consideramos a “capital secreta do mundo”.
Para provar essa singularidade, observei que Cachoeiro é uma cidade que sempre se abriu à tolerância, à supremacia dos grandes valores humanos. E para que essa afirmação não caísse no vazio de um bairrismo exacerbado, citei uma passagem ligada à vida de Demistóclides Baptista, nosso saudoso Batistinha. Fiz a remissão histórica na presença de Moema Baptista que, como eu, foi Cachoeirense Ausente Número 1 em anos pretéritos. Moema, sobrinha de Batistinha, confirmou com um aceno de cabeça a exatidão do episódio.
Batistinha estava exilado. Falece então, em Cachoeiro, sua Mãe. Avisado, o filho corre o risco, mas ingressa, clandestinamente, no Brasil, para ir a Cachoeiro prestar a última homenagem àquela que lhe trouxe ao mundo. Um enterro não se faz às ocultas. Era evidente que, Batistinha, um exilado político, “foragido” da Justiça Militar, estava na cidade. Ninguém, porém, delatou Batistinha. Ninguém se movimentou para que Batistinha fosse preso.
Eu arrematei a narração do fato com uma conclusão. Batistinha era um exilado político, um proscrito. Quem, sendo cachoeirense, se atrevesse a prendê-lo, naquelas circunstâncias, assinaria sua própria sentença de “proscrição moral”. Cachoeiro não aceitaria um ato de tamanha indignidade.
E assim Batistinha, depois do sepultamento de sua Mãe, voltou ao exílio, peso do
qual só se libertou quando a Anistia foi conquistada por aqueles que aqui ficamos.