CRIME E CONTROLE SOCIAL: HOMENS LIVRES PRISIONEIROS DA SOCIEDADE QUE ELES MESMOS CRIARAM
É de certa forma uma lástima reconhecer que vivemos em uma sociedade muito violenta, onde todos os tipos de delitos passaram a ocupar um lugar de destaque no cotidiano, nas páginas sangrentas dos jornais e no seio das famílias, fazendo com que se discutam meios mais efetivos e eficazes de combate à criminalidade.
A violência firmou-se como a principal preocupação do homem, prisioneiro em seu próprio lar, obrigado a viver sobressaltado e cercado de grades e sistemas de segurança por todos os lados. Isso para quem pode.
As ruas, sem exageros, transformaram-se em lugares completamente inseguros, onde andar de carro ou sozinho gera uma possibilidade plausível de ser roubado ou até mesmo morto por pessoas que não respeitam as leis existentes.
Em decorrência dessa tragédia social é que a criminologia moderna, ao contrário da tradicional, deixou de voltar-se diretamente para o delinquente e, sob uma análise mais sociológica e dinâmica, passou a se ocupar, também, com o problema do controle social do crime, deslocando o centro das investigações para a conduta delitiva em si, para a pessoa da vítima e do controle social propriamente dito.
Nessa nova abordagem, a Criminologia passou a adotar o “labelling approach” ou Teoria do Etiquetamento, segundo a qual a análise do processo de aplicação das normas à realidade social tem mais relevância que a interpretação das leis.
A título de exemplo, furtar é crime, mas se praticado por uma pessoa rica que poderia comprar, seria uma distração etc. Observem que o criminoso é selecionado pelas características do meio em que está inserido e não pela conduta. Assim, o sistema punitivo não combate a criminalidade, mas atribui rótulos ou etiquetas.
Vejam um clássico (rsss) da imprensa, em um interregno de 10 dias:
“Polícia prende TRAFICANTE com 10 kg de maconha em Fortaleza” (G1, CE, 17/03/2015).
“Polícia prende JOVENS DE CLASSE MÉDIA com 300 kg de maconha no Rio” (G1, RJ, 27/03/2015).
Por essa razão, o saudoso criminalista Luiz Flávio Gomes, em dueto com Antonio Garcia-pablos de Molina (in Criminologia, Revistas dos Tribunais), prelecionou que toda sociedade ou grupo social necessita de uma disciplina que assegure a coerência interna de seus membros, de forma que esta se vê obrigada a criar uma gama de mecanismos que assegurem a conformidade daqueles com suas normas e pautas de condutas.
Esta disciplina corresponde ao controle social, que é um “conjunto de instituições, estratégias e sanções sociais que pretendem promover e garantir o submetimento do indivíduo aos modelos e normas comunitários”.
Para a eficácia desse controle social e encaixe do cidadão aos postulados normativos, a sociedade se vale de agentes, classes de instâncias ou portadores do controle social, os quais terão papel decisivo no combate à criminalidade, subdivididos em AGENTES INFORMAIS e os AGENTES FORMAIS.
Os agentes informais de controle da criminalidade agem durante o processo de desenvolvimento do indivíduo, sutis, sem usarem de meios coercitivos ou punitivos, como elementos de condicionamento, na verdade. São eles a família, a escola, a profissão, os grupos de trabalho, a opinião pública, a igreja etc. E, como agentes de controle, produzem menos dor e sofrimento nessa construção, eis que não se utilizam de estigmatização.
Os dois dos agentes informais que são as principais bases de sustentação de toda a sociedade são a FAMÍLIA por causa da natureza e proximidade com o homem e, em segundo plano, a ESCOLA, uma extensão, por assim dizer, da família.
“Ab ovo”, o indivíduo integra o núcleo familiar, que esculpe sua personalidade e lhe dá meios para um desenvolvimento pessoal e social saudável.
Essa família de bases sólidas afasta toda e qualquer conduta que possa vir a contribuir para a destruição e corrupção de valores, eliminando um cenário de delinquência.
Mas hodiernamente verifica-se um enfraquecimento dos laços familiares, com pais ausentes e filhos sem orientação e à própria sorte, quando muito esses pais transferem a responsabilidade para a escola para educar e incutir valores.
Por tais motivos a escola assume papel relevante na formação do indivíduo, delineando sua personalidade, sua cidadania, sua profissão, ensinando valores ao educando para discernir entre o certo ou errado, bom ou ruim.
Aí a escola estabelece uma “ponte de ligação” entre o indivíduo e a sociedade, agindo, por consequência, como importante instância de controle social da criminalidade.
A par desse papel da escola, o Estado que tem o dever constitucional de educar seus cidadãos, mas não o faz ao nível desejado, relegando essa missão a outro plano.
O resultado da omissão da família que é a sua base de formação, tanto moral quanto intelectual ou religiosa, somada à precariedade das instituições, arremete o indivíduo à mercê das vicissitudes e, por conseguinte, convola-se num fator crucial para o aumento da criminalidade.
Quanto aos AGENTES FORMAIS esses são os segmentos, instituições e políticas que irão atuar de forma eminentemente coercitiva, impondo sanções aos infratores, sendo os principais a JUSTIÇA e a POLÍCIA.
A JUSTIÇA atua diretamente no Direito, proeminentemente no Direito Penal, cujo escopo é criar e manter uma ordem social que, se não for plena, tenha conflitos em níveis toleráveis.
Por meio da jurisdição o Estado transfere para si a composição dos conflitos sociais, subtraindo dos cidadãos o direito de reagirem contra uma pretensão insatisfeita ou agressão aos bens tutelados pelo Estado. O direito de punir é estatal (“Da mihi factum, dabo tibi ius” - Dá-me os fatos que lhe darei o Direito") e tem como meta restabelecer a ordem e a paz atingidas pela agressão ilícita.
O Direito Penal de que se utiliza o Estado para o controle social é um sistema normativo formalizado, estruturado de forma racional; há grau de divisão do trabalho e de especialidade funcional dentre todos os subsistemas normativos. Por meio do devido processo legal, impõe sanções ao delinquente materializadas por meio das penas, visando restabelecer a harmonia, a tranquilidade e a pacificação social.
A pena é a característica principal do Direito Penal. Deve ser personalíssima, conforme a lei (“nullum crimen, nulla poena sine praevia lege” - não há crime nem pena sem lei prévia) e proporcional ao delito praticado.
As finalidades da pena é retribuição de um mal contra aquele que causou também um mal. A segunda finalidade é preventiva, para com a punição se evitar a prática de novas infrações; possui, ainda, um fim intimidativo aos demais destinatários da norma penal, fazendo com que eles, ao verem o sofrimento das pessoas enviadas ao cárcere, se desestimulem e deixem de praticar delitos (prevenção geral); e por último, a pena retira do meio social o faltoso, impedindo-o de delinquir e corrigindo-o (prevenção especial).
Enfim, a pena deve ser dotada de eficácia, cumprir a função de pacificação social, moldada às circunstâncias de modo, tempo e lugar e peculiaridades da sociedade.
Não obstante o controle social da criminalidade feito pelo Direito Penal seja um dos mais eficientes, no âmbito acadêmico e doutrinário surge uma onda propondo profundas alterações quanto à aplicação da pena.
É a política da INTERVENÇÃO MÍNIMA DO ESTADO nas sanções privativas da liberdade, priorizando as penas alternativas (pecuniária, perda de bens, prestação de serviço, supressão ou interdição de direitos), as quais em tese são suficientes à repressão.
Ora, se a função social do Direito Penal é a pacificação atingindo o delinquente, equilibrando as relações jurídicas e se as penas de privativas de liberdade não estão resultando efetivas nas suas finalidades acima mencionadas, parece-me que a finalidade social de pacificação e proteção de bens jurídicos relevantes está sendo frustrada a um custo muito alto para a sociedade.
A vitória desejada contra a delinquência só será alcançada quando nossa sociedade promover a chamada JUSTIÇA SOCIAL, acabando de vez com a concentração de renda, investindo na educação, saúde, moradia e empregos, independentemente do tipo de sanção aplicada (pena restritiva de liberdade, restritiva de direitos, pecuniária, de morte).
Bem, vou falar um pouco da POLÍCIA como o segundo agente formal de controle social, dada a proximidade que, como Promotor de Justiça e Professor Universitário de Direito, sempre tive, conhecendo suas entranhas, suas virtudes, defeitos e dificuldades operacionais.
A Polícia, de acordo com Mirabete, “é uma instituição de direito público destinada a manter a paz pública e a segurança individual” e quanto ao seu objeto, é bipartida em POLÍCIA ADMINISTRATIVA (atua em caráter preventivo, objetivando impedir a prática de atos lesivos a bens individuais e coletivos) e POLÍCIA JUDICIÁRIA (atua na apuração das infrações penais e suas respectivas autorias).
Em ambas as divisões, a polícia busca a todo custo coibir o aumento da criminalidade e a ação dos infratores, realizando investigações preventivas ou “a posteriori” para identificar o criminoso e dar elementos ao primeiro agente formal (JUSTIÇA) para seu julgamento e sua punição.
Muitos atores sociais afirmam que a polícia, ao contrário do que deveria ser, é a responsável direta pelo aumento da criminalidade, por falta de uma melhor política de defesa do cidadão.
“Data maxima venia”, essa afirmação é completamente injusta e não condiz com a realidade social dos fatos.
“Ex vi” do artigo 144 da CF/88 a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos e é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
Repito: responsabilidade de todos! Cada qual possui o seu quinhão de responsabilidade na preservação da integridade física e defesa patrimonial dos bens de todos do cenário social.
Portanto, a Polícia não é e nem nunca foi a responsável pelo aumento da criminalidade. Sustentar isso é uma heresia profunda de leigos no assunto na busca de um bode expiatório.
Posso elencar inúmeros outros elementos que geram a violência: desemprego, educação de má qualidade e restrita; precárias condições de saúde; corrosão do núcleo familiar; habitats sub-humanos; flexibilização ou tolerância com o uso de substâncias psicotrópicas permitidas (álcool) ou proibidas (maconha, cocaína etc.) e por aí vai ...
Na prática há uma falta de um apoio efetivo por parte do Estado. Os órgãos policiais têm recursos minguados insuficientes para combaterem a criminalidade no nível em que se encontra.
Os agentes policiais vão para o embate contra os marginais que se utilizam de armas de última geração adquiridas no ilícito mercado negro, armados com simples revólveres e pouca munição, viaturas precárias, delegacias e quartéis sem estrutura física e tecnológica e salários incompatíveis com a função.
Mas têm a obrigação de preservarem a ordem pública e a integridade física e patrimonial dos cidadãos com o sacrifício de suas próprias vidas (compromisso de sangue), sob pena de omissão e responderem a processo administrativo e penal.
No meu ver, são verdadeiros heróis lançados no campo de guerra contra um inimigo potencialmente melhor preparado.
Portanto, de pouco adianta a Polícia combater as consequências externas do crime, enquanto que o Estado não enfrenta as causas que levam as pessoas à marginalidade, num vicioso processo de enxugar gelo.
O Estado, as organizações civis e cada cidadão têm a obrigação constitucional de assumir o seu grau de responsabilidade pela segurança da sociedade como AGENTES FORMAIS E INFORMAIS que são!
Para finalizar, como homenagem póstuma e para enriquecer este rabisco despretensioso sobre o tema, peço vênia para transcrever uma citação de Luiz Flávio Gomes, com quem tive a honra de debater assuntos da seara criminal e que nos deixou precocemente. Ao abordar os sistemas de controle da criminalidade, o mestre concluiu que “a eficaz prevenção do crime não depende tanto da maior efetividade do controle social formal, senão da melhor integração ou sincronização do controle social formal e informal”.
Selva!