A ONÇA MIAU

A ONÇA MIAU


Oiiii, eu sou a onça Miau!  Miauuuuu.... miauuuuu....

Sou da família das onças pintadas, animais carnívoros predadores localizados no topo da cadeia alimentar.

Preciso de grandes áreas preservadas para sobreviver e sou considerada indicador biológico de qualidade ambiental, pois onde há onça indica que a região oferece condições adequadas.

Vou contar a minha história pra vocês, tá?

Eu era bem pequenina, vivia na maravilhosa floresta Amazônica, com muitos bichinhos, árvores e rios de água limpa. Minha mãe onça cuidava bem de mim, eu mamava todo dia e depois adorava suas lambidas que faziam minha pele brilhar no sol reluzente do norte do Brasil.

Eu brincava com as borboletas, tomava banho de rio e lagos, subia nas árvores. Ai ai, como minha vida era boa...

Mas um dia vários homens-maus, com paus de fogo na mão e muitos cães de caça, correram atrás de mim e de minha mãe. De repente ouvi um estrondo e minha mãe caiu, jorrando um líquido vermelho no peito.

Poxa, minha mãe não fez nada para eles! Por que fizeram isso com ela? Até hoje não entendi.

E os cachorros me acuaram querendo me morder, mas logo um homem-mau me pegou e me prendeu num caixote. Ufa, criançada, eu pensei que ia morrer!

Eram caçadores, criaturas abomináveis, detentores do poder de vida e morte sobre todos os animais. Matam somente por prazer ou para trocarem a carne de caça, as peles e os filhotes por dinheiro.

Essa é a saga das onças pintadas, que são caçadas e mortas pelo valor no mercado negro de sua pele e pelo valor dos filhotes que são traficados, separando-os cruelmente das mães.

Aquele caixote era muito escuro e apertado. Eu fiquei presa, sem comer e beber por vários dias, no meio da minha própria sujeira. Eu miava muito, chorava e chamava a minha mãe.

Até que um dia uns bichos-homens-bons com uniforme verde camuflado prenderam os bichos-homens-maus. Era o Batalhão Ambiental do Amapá, que tirou das mãos dos caçadores uma indefesa bebezinha de onça pintada.

Eles encontraram muitas peles de animais mortos. Olhei pelo buraco do caixote e reconheci a pele da minha mãe... eu miei e chorei sem parar...

Um bicho-homem-bom de uniforme verde camuflado abriu a tampa, me limpou, me deu água e um pouco de leite e depois me trancou de novo.

Passadas algumas horas, chegamos num local muito parecido com minha casa na floresta, cheio de árvores e bichos. E me entregaram para um bicho-homem-barbudo, parecia um macaco guariba, tipo remanescente dos homens das cavernas.

Esse homem curou minhas feridas e me tratou com muito carinho. Até fez uma casinha pra mim, com tronco de árvore para eu afiar minhas garras, um laguinho e uma toca pra tirar uma soneca.

Quase todos os dias o bicho-homem-barbudo me dava banho de mangueira e me alimentava com carne saborosa. Ensinou-me a brincar, rolar e dar cambalhotas.  

Ali por perto na vizinhança havia vários bichos-homem-maus, que invadiam aquele recanto e matavam uns bichinhos meus amiguinhos com baladeiras.

Lá fiz amizade com o filhote de anta Chicão, a coruja Murututu, a lontra Chupeta, o macaquinho Chico, o porquinho Caititu, a águia Harpia, muitos saguis, cutias e pacas. Passarinhos então eu nem conseguia contar. Eles vinham todo dia cantar para mim e beliscar uns restinhos da minha comida.

Um dia os bichos-homens-maus da cidade soltaram muitos fogos e fizeram tertúlias barulhentas que me estressaram. Por isso me machuquei nas grades da minha casinha. Perdi várias unhas encravadas, mas fui salva por cirurgia que o bicho-homem-barbudo conseguiu para mim.

Vários dias da semana o bicho-homem-barbudo levava um monte de crianças para me visitar. As crianças ficavam fascinadas quando o bicho-homem-barbudo me chamava “vem Miau”. Mesmo em cativeiro, eu aprendi a ser dócil e brincalhona, dava cambalhotas e tomava banho de mangueira.

Eu chamava a atenção pela minha história, beleza e porte elegante de maior felino da América Latina. Ali na reserva eu podia ser vista de perto para servir de exemplo para os alunos visitantes, com foco na necessidade de sobrevivência das espécies e do sofrimento dos animais provocados pelo homem.

De vez em quando aparecia um bicho-homem-careca, andava parecido com um pinguim, cercado de um monte de bichos-homens e bichos-mulheres adolescentes, que anotavam tudo que o bicho-homem-careca falava. Enquanto andavam, uma galinha d’angola macho, meu amiguinho adorável Zé, perseguia o grupo gritando “tô fraco, tô fraco” enquanto beliscava as pernas dos visitantes.

Esse bicho-homem-careca com jeito de pinguim falava que lá era uma reserva ambiental criada pelo bicho-homem-barbudo-guariba com o objetivo de desenvolver atividades de educação ambiental e pesquisas em ecossistemas naturais dos quais se destacam as florestas (várzea, terra firme etc.) e suas diferentes faunas (insetos, aracnídeos, moluscos, anfíbios, peixes, aves, répteis, mamíferos etc.).

Era um paraíso encravado na cidade de Santana-AP, às margens do maior rio do mundo, o Amazonas. Um lar de animais que não podem mais ser reinseridos à natureza e precisam de ajuda.

E papaizinho do céu também me deu uma mãezinha bicho-mulher: mãe Marilene Amorim. Ela me dava leite na mamadeira e me fazia dormir no colo bem quentinho. Ela não sabia miar como minha mãe-onça e nem me lambia. Mas fazia carinho no meu cangote, escovava meu pelo e me cobria de beijos e abraços.  

Depois descobri que o bicho-homem-barbudo que me acolheu era um bicho-homem-médico que cuidava de crianças. Aí entendi porque ele me tratou tão bem quando eu era pequenina.

Chamavam-no de doutor Paulo Amorim, um ambientalista nato, cuja grande paixão era desenvolver atividades em prol da comunidade e de preservação do meio ambiente. Ele pregava e prega até os dias atuais um mundo melhor, mais altruísta e sustentável, no qual o ser humano precisa respeitar e entender a importância do meio ambiente, da fauna e da flora.

Mas num dia muito chuvoso, e muito triste, o bicho-homem-barbudo chorou copiosamente ao me ver dodói. Ele e minha mãezinha bicho-mulher ficaram ali do lado da cama, ambos fazendo afagos no meu pelo. De repente, fui perdendo as forças. A minha língua ficou roxa, as mãos frias e o rosto pálido coberto pelas brumas embaçadas que vinham do Rio Amazonas.

Ainda consegui ver o olhar suplicante da minha mãe-bicho-mulher, que se fundia ao olhar esperançoso dele, que foi ficando turvo e cheio de lágrimas.

Eu parti para um outro plano, sem miar, sem chorar, sem sentir dor, contemplando aquele anjo que me salvara... meu último olhar foi para aquele rosto barbudo triste e ao mesmo tempo sereno. Esta será a imagem que eu levarei para sempre... até os confins do universo.

Mas quando meu coração parou de bater e dei o último suspiro longo e profundo, quem urrou foi meu paizinho bicho-homem-barbudo, um grito lancinante que ecoou pela floresta adentro, se espalhou pelas águas do Igarapé Mangueirinha e desapareceu no estuário do Rio Amazonas.

Ele como médico que é, acostumado com a vida e a morte, estava na mais profunda agonia vendo meus sinais vitais se esvaindo. Usou todo o seu saber científico de doutor, mas sabia no seu sofrimento etéreo que não mais veria sua filha, um bicho-onça mais gente que muito bicho-gente que ele conhecera.

Daí meus pais bichos-homens me colocaram num caixote de madeira com uma tampa por cima. E depois cavaram uma cova nas margens do Igarapé Mangueirinha, no meio da mata da Reserva Ambiental Revecom, um paraíso fantástico que me acolheu na fase terrena. Cobriram-me de terra e pedras e fincaram dois troncos de árvore em forma de cruz. E sobre minha sepultura, os dois abraçados entrelaçaram as mãos e as elevaram em direção ao céu, orando uma prece sentida.

De todas as coisas que aprendi com o bicho-homem-barbudo, foi compreender a existência e entender as coisas da vida. Cresci sem liberdade num cativeiro, porque a liberdade para mim seria uma sentença de morte, pois não aprendi a viver sozinha sem minha mãe-onça na atmosfera livre e pulsante da floresta e, ao mesmo tempo, perigosa.

Eu me sentia impotente diante da existência de um destino que desconhecia, mas tinha uma simbiose com aquele animal humano e vivia em paz com a solidão, abraçando meu pai bicho-homem-barbudo que meu deu um lar, carinho, comida, proteção e amor acima de tudo.

E todas as manhãs, aquele bicho-homem-barbudo vai para a beira do Igarapé Mangueirinha, olha para aquelas pedras e a cruz do meu berço eterno ali ao lado da minha casinha onde eu turrava desesperadamente chamando por ele.

Era ali, quando o bicho-homem-barbudo chegava, que eu corria para um lado e para outro, dava cambalhotas para ele e recebia como recompensa uma prosa, uns afagos e um refrescante banho de mangueira.

Até hoje naquele lugar encantado o bicho-homem-barbudo ouve sussurro de onça mata adentro e ele não sabe se chora ou se ri. Algumas pessoas também já relataram ouvir esses sussurros do além.

São os meus sussurros de filha-bicho-onça que meu pai bicho-homem-barbudo pensava nunca mais ouvir...

Adeus meu anjo de barba com cara de guariba que eu tanto amei e tanto fez por mim... Adeus meu paraíso RPPN Revecom!

Notas:
1)    A onça Miau morreu de câncer linfático após viver 17 anos na Reserva Ambiental Revecom (Vila Amazonas, Santana-AP).

2)    A destruição de habitats e a caça predatória são as principais causas da redução severa de onças-pintadas. Elas são classificadas pela IUCN (União Internacional para Conservação da Natureza) e pelo IBAMA como espécie vulnerável e integram o apêndice I do CITES (Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção).

3)    A onça pintada desempenha uma função ecológica muito importante no equilíbrio das populações de outros animais, zelando pela integridade dos ecossistemas.

4)    O dr. Paulo Amorim transformou sua área de 17 hectares em reserva em 1998, investindo recursos próprios. O local serve de hospital, refúgio e hospedagem para animais em perigo e/ou mutilados pelo “homo sapiens”. Recebe visitantes e dá aulas de direito ambiental para o ensino fundamental e universidades.

5)    A Reserva passa por grave crise financeira agravada pela pandemia da Covid-19. Por ser particular, a manutenção do local é feita de doações.
Acesse: https://www.revecombr.com.br
COLABORE: Pix/CNPJ: 01.477.979/0001-56 (Revecom Comércio e Serviços Ambientais). Banco do Brasil: ag. 3346-4 - c.c. 32.901-0.


Dr. Adilson Garcia

Dr. Adilson Garcia

Fórum Íntimo – professor doutor em Direito pela PUC- -SP, advogado e promotor de justiça aposentado.



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