QUEM MATOU ANA JULIA?
Era uma linda tarde de setembro quando a princesinha Ana Júlia saiu de sua casinha, um barraco sobre as palafitas da maior favela de Santana (AP), a Baixada do Ambrósio, localizada na área portuária. Na ingenuidade infantil, saboreava um pedacinho de bolo como se fosse um manjar dos Deuses caminhando sobre uma das passarelas de madeira podre, as únicas obras públicas que nossos governantes relegam para aquela população miserável!
Aí, que delícia! Ana Júlia retornava à sua residência, cuidando do seu pedacinho de bolo para não cair nenhum farelinho, pois afinal, não é todo dia que uma criança pobre da Baixada do Ambrósio pode comer um bolinho.
Mal sabia Ana Júlia, que ali, em plena luz do dia, naquela linda tarde de setembro, na Baixada do Ambrósio, pertinho dos sinos da Igreja dos Navegantes, haveria mais um dos tantos conflitos de facções.
Flávio Teodósio e Goodofredo, de vulgo “SECO”, pertencentes à facção FTA (Família Terror Amapá), ambos na flor da idade de seus 18 anos, efetuaram um disparo de arma contra o “ex adverso” Willian, de alcunha “VESGUETA”, um juvenil membro de 15 anos da gangue rival APS (Amigos Para Sempre), por motivo mais torpe possível: um acerto de contas entre gangues.
Pouco importava para aqueles delinquentes se naquele momento na linha de tiro caminhava Ana Julia comendo seu pedacinho de bolo.
Afinal, não podiam perder a oportunidade de matar seu inimigo que estava ali “dando sopa” na claridade solar daquela linda tarde de setembro na Baixada do Ambrósio, não é mesmo?
Mais uma “bala perdida”, na verdade uma “bala achada” na cabeça de uma pobre criança inocente. Ana Júlia não comeu todo seu bolinho. E nunca mais irá comer um bolinho nas passarelas da Baixada do Ambrósio numa linda tarde de setembro...
Nossas leis (ECA, Lei 8.069/1990 e art. 227 da CF/88) estabelecem a proteção integral às crianças e aos adolescentes brasileiros.
Mas por que tantos meninos de rua? Por que tantas meninas exploradas sexualmente? Por que tantos meninos carregam uma arma na mão ao invés de um livro ou uma caneta?
Por que, meu Deus? Por quê?
O aparelho repressor do Estado (policiais, delegado, promotor e juiz) rapidamente chegou à autoria do hediondo crime e prenderam em flagrante.
Mas quem matou Ana Júlia, mesmo? Será que foram somente os delinquentes da gangue Família Terror do Amapá que puxaram o gatilho?
No meu ver não foram só eles. Também tem o dedo do Estado naquele gatilho.
A sociedade inseriu na Constituição de 1988 importantes diretrizes (art. 227) prescrevendo que é dever absolutamente prioritário da família, da sociedade e do Estado assegurar ao menor o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Mas a violência no meio social, longe de acabar, vem apresentando índices alarmantes. A violência, como se sabe, manifesta-se tanto pela ação como pela omissão.
Há violência quando o nascituro morre no ventre da mãe por desídia médica, quando a criança morre por letal ignorância dos próprios pais e por falta de médico e remédio para tratar de uma reles desidratação.
Há violência quando nossos jovens são vítimas entre si por conta de suas vidas desregradas decorrentes da omissão dos pais e das políticas públicas.
Pode parecer que os pontos acima enfocados são elementos hipotéticos para uma tese de doutorado, mas infelizmente trata-se da realidade, dura e crua, do nosso cotidiano quando abrimos as páginas sangrentas dos nossos jornais e vemos as imagens das nossas crianças inertes sobre uma poça de sangue, com uma inútil tarjeta preta para esconder os horrores vergonhosos da nossa sociedade.
O Brasil figura como um dos cinco países do mundo com maiores índices de homicídios de jovens entre 15 e 24 anos. Segundo a Unesco, os números de mortes nessa faixa é de 54 em cada grupo de 100 mil habitantes e as medidas de internação superam 12.000 jovens privados de liberdade em unidades superlotadas, onde vigora ociosidade, violência, maus tratos e tortura. São verdadeiros presídios e não unidades educacionais.
Há solução? Sim, há.
É linda nossa Constituição e belas nossas leis, não é? Até parece que estamos na Suíça! Mas de que adiantam leis excelentes pródigas em direitos se nada é cumprido?
O fenômeno da criminalidade está intimamente ligado à falta de atendimento às necessidades básicas do jovem que, por sua vez, representa um processo global de marginalização social, fator esse catalizado pela pobreza e falta de oportunidades de trabalho e assistência.
Para entender bem onde está o dedo do Estado no gatilho daquele revólver da Gangue FTA (Família Terror Amapá), precisamos fazer uma interpretação topográfica senão geográfica da coisa. Vamos ao cenário do crime.
A Baixada do Ambrósio é uma das maiores favelas do Amapá sobre palafitas. Fica localizada na área Portuária de Santana, a segunda maior cidade do estado com 130 mil habitantes. É entrecortada por passarelas de madeira e de concreto. Tem apenas a rua Rio Jari e a rua 31 de março, que avançam poucos metros, ambas inacabadas que não levam nada a lugar nenhum, senão à violência e criminalidade.
A Baixada do Ambrósio é basicamente consequência direta das instalações que se formaram em torno do porto de Santana, das grandes empresas internacionais ICOMI (Ind. e Comércio de Minérios), AMCEL (Amapá Florestal e Celulose S.A.) e BRUMASA (Indústria de Compensados S/A).
A parte alagada, vulgarmente conhecida como baixada, atualmente é conhecida como “Baixada do Ambrósio”, nome dado em homenagem a um antigo morador, o calafate Ambrósio Vitorino Marques Neto, falecido em 2006 aos 79 anos de idade.
O “bairro” é recorrentemente apresentado em manchetes policiais, associado à grandes operações de apreensão de drogas, ocorrências de homicídios ou pela prática de atos criminosos em geral reforçando o estigma de bairro violento.
Esses fatos reforçaram um processo de esquentamento sobre a região, determinante para a associação automática entre pobreza e criminalidade.
Segundo o Censo de 2010 (IBGE) são 953 domicílios ocupados em área de ressaca. As casas são construídas muito próximas umas das outras, reunidas por aglomeração, entre igrejas, bancas de vendedores informais, pequenos comércios, batedeiras de açaí e locais de venda de alimentos prontos, interligadas por pontes de madeira. E muitas “bocas de fumo”! A área é reconhecida como uma das localidades mais violentas do município de Santana/AP.
Isso porque ali não entra viatura da polícia, não entra ambulância e Deus nos livre se houver um incêndio: queima até o último barraco porque o caminhão do bombeiro ficaria á léguas do foco.
Lá não tem posto de saúde, não tem delegacia e nem base da polícia militar. Não há postes de iluminação pública, não tem água encanada e nem vias de acesso, senão as precárias pontes de madeira apodrecidas.
Enfim, o Estado está ausente dali, bem longe nos gabinetes confortáveis e refrigerados dos suntuosos Palácios Públicos.
Pois é. Casa que não tem gato, quem manda são os ratos...
Diante desse caos social, determinei em 2019 à minha equipe técnica liderada pelo engenheiro Décio Oliveira, a elaboração de um projeto de urbanização da Baixada do Ambrósio quando era o titular da Promotoria do Meio Ambiente, Urbanismo, Habitação e Conflitos Agrários de Santana, tendo em vista os recursos da ordem de R$ 47 milhões obtidos com um TAC (Termo de Ajuste de Conduta) com a Mineradora Anglo American, decorrente do acidente com o Porto de Embarque de Minérios que ceifou vidas e levou o setor econômico de Santana ao limbo.
O Estado há anos, engavetou um projeto de urbanização de 2006 da arquiteta Liliane Robacher, que contemplava a remoção de 170 casas daquela área do Ambrósio, certamente por falta de recursos e por falta de compromisso político e humano com aquela pobre população relegada ao descaso. Recentemente, o senador Davi Alcolumbre surfando na crista da onda da Presidência do Senado ressuscitou aquele projeto, mas até agora nem tchum!
Pelo projeto de urbanização da área elaborado pela Promotoria abrem-se várias ruas, interligando a rua Rio Jari com a avenida Cláudio Lúcio, bem como completando a rua 31 de Março até chegar nos limites do porto da empresa de navegação Souzamar, que hoje é usado como via pública pelas pessoas porque os Governos nunca fizeram nada lá. Isso impede os empresários da Souzamar de fazer investimentos gerando emprego e renda.
Nesse projeto, a passarela Shalon é transformada em rua e as casas limítrofes com o muro da Souzamar seriam desapropriadas.
Basicamente, o projeto consiste na remoção de 155 imóveis, com indenizações da ordem de R$ 6 milhões, incluindo-se a desapropriação e a possibilidade de construção de conjunto habitacional para realocação das famílias (10 blocos de aptos de 4 andares); a construção de quatro (4) novas vias com pavimentação em bloquetes, água, drenagem, iluminação, passeio, acessibilidade e arborização viária (investimento de 4 milhões na área, estimado); construção de passarelas de concreto e a criação de equipamentos urbanos e comunitários, tais como posto policial, creche, parque linear para as crianças, centro comunitário, posto de saúde etc.
Embora com R$ 30 milhões do TAC já depositados em conta judicial da Prefeitura de Santana, até hoje o projeto não foi adiante por pura incompetência do poder executivo e pelo excesso de burocracia do Ministério Público e da Justiça Federal em aprovarem os projetos.
Aliás, é bom que se diga que não cabe ao Ministério Público fazer as vezes de executivo, imiscuindo-se em demasia na seara da conveniência e oportunidade que são requisitos intrínsecos do ato administrativo do Poder Executivo de gerir a coisa pública.
Traduzindo em miúdos, cabe ao Poder Executivo, dentro do poder que lhe foi conferido pelo voto (a chamada “longa manus” popular), dizer QUANDO e ONDE vai aplicar os recursos.
Se o Ministério Público cumprir a sua missão constitucional de fiscal da ordem pública já está de bom tamanho, ao invés de ficar “FRESCANDO” porque causa de um “REFRESCO” como item de uma cesta básica cheia de “FAIJÃO” que, por isso, nunca chegou no estômago faminto da população carente.
Um envelope de suco Ki-suco custa R$ 1,50. Hei, “dotô” Juiz! Hei, “dotôra” Promotora: suco é alimento e filho de pobre só pode tomar Ki-suco, tá?
E não adianta mandar pintar os casebres: só vai colorir o cenário macabro da violência e criminalidade já manchado com as cores de sangue de anjos inocentes, como Ana Júlia!
Então, quem puxou o gatilho que levou o anjinho Ana Julia para comer o resto do bolinho no céu, sem direito a Ki-suco, não foi só a facção FTA (Família Terror Amapá) digladiando com a gangue APS (Amigos Para Sempre).
Tem o dedo da gangue omissa do Estado! E quem são os integrantes dessa gangue?
Ah! Não vou dizer, mas são velhos conhecidos...