O beijo, o topless, o cancelamento e a história - Dr. Paulo Madeira

O beijo, o topless, o cancelamento e a história - Dr. Paulo Madeira


Foi pensando na leitura de um texto intitulado “O beijo, o topless, e a cultura regional”, assinado por um certo Paulo Grego, que ninguém co- nhece, e que foi publicado num blog qualquer, que Raimundinho, aluno do Liceu maranhense, acordou ani- mado para escrever uma crônica, onde quis acrescentar as expressões do momento: redes sociais e cance- lamento.

Escreveu:

O beijo, o topless, o cancelamento e a história.

O bairro do Matadouro, em São Luís do Maranhão, herdou o nome do empreendimento público de abati- mento do gado, o Matadouro Modelo, do início dos anos 1920, ou do ano de 1918, segundo alguns registros

No entorno do empreendimento havia um sem-número de pequenas barracas, com vendas de comidas, ar- tesanatos, alguns comércios de secos e molhados e uma vida muito pul- sante todos os dias. Com o correr dos tempos, virou bairro da Liberdade, já no ?nal dos anos 1960, continuando com uma vida comercial bem in- tensa. Dentro da área do mercado municipal, onde vendem pescados, frangos e víveres em geral foi que Raimundão, nascido em São Bento, região da Baixada maranhense, ini- ciou sua “venda diferenciada”, como gostava de dizer. Isso já era nos anos 1980, quando São Luís do Maranhão explodia com as radiolas de reggae ja- maicano, tocando músicas em som ensurdecedor. Incomodado com aquilo, e fã de música popular brasi- leira, Raimundão começou a colecio- nar LPs, compactos e ?tas cassetes só com o que ele chamava “o ?no da MPB”. O bar era muito modesto e ele usava a criatividade para atrair o pú- blico. Um móvel de uma velha má- quina de costura Singer virava uma mesa estilizada. Um landruá de pes- car marisco, uma decoração. Um pilão emborcado, um tamborete. Uma biana aposentada era um abajur de teto. Com esse cenário, cerveja es- tupidamente gelada, músicas em vo- lume baixo, não tardou para o bar do Raimundão, num bairro periférico da Ilha, virar queridinho da intelectuali- dade. Poetas, jornalistas, estudantes universitários, batiam ponto no local. Como nem tudo são ?ores na vida humana, Raimundão tinha manias que incomodava. Não aceitava, por exemplo, que ninguém levasse um violão para tocar no bar. Abriu uma exceção quando foi ao local um violi- nista nacional de quem era fã, artista esse que ouvira falar do lugar “cult” numa feira popular e ?cou curioso e interessado em conhecer. Raimun- dão também não gostava que os clientes cantassem, acompanhando as músicas tocadas. Dizia que música boa era para ouvir em silêncio. No campo dos costumes era um conser- vador inveterado, um ranzinza, che- gando a ser rude com quem não seguisse algumas “regras da decên- cia”, como ele dizia. Assim, uma mu- lher de mini-saia, com tatuagens à mostra, podia até entrar, mas sempre era fulminada com um olhar repro- vador dele. Beijos de língua dentro do ambiente, nem pensar. Dançar ao som de uma música mais animada, um pecado inaceitável. Todo esse comportamento tosco acabou vi- rando parte da mobília e era um dos atrativos. As pessoas folclorizavam e tiravam sarro. O bar ia seguindo com boa música, cerveja gelada, bom tira- gosto e as esquisitices do Raimundão. Raimundão não acompanhou a evolução dos costumes e não perce- beu que seu comportamento rabu- gento e folclórico estava pondo em risco seu ganha-pão. Não imaginava que no novo milênio estava para ser cancelado, como se fosse uma peça teatral para a qual já não havia público.

Numa noite comum de sexta-feira, como fazia todos os dias, Raimundão limpou as mesas, selecionou músicas e estava se preparando para atender aos clientes, juntamente com a mu- lher e os quatro ?lhos, quando che- gou ao local um casal de homens de mãos dadas. Eram jovens, aparen- tando vinte e cinco anos de idade, com as barbas bem feitas e exalando um perfume bem agradável. Rai- mundão olhou de esguelha, esperou sentarem, e iniciou:

  • Boa noite. Os senhores são turis- tas?
  • Sim, sim, respondeu um deles. Somos de Salvador. Ouvimos falar do seu empreendimento e resolvemos vir conhecer.

A pedido deles Raimundão serviu uma Brahma bem gelada, botou Rosa de Hiroshima na vitrola e voltou para o caixa. Lá pela terceira cerveja um dos rapazes, puxando para si o rosto do companheiro de mesa, iniciou um beijo de língua, demorado, revirando os olhos. Ao ver a cena, Raimundão saiu de trás do balcão e disse:

  • Ei ei ei...podem parar! Vocês não leram a placa que está na entrada? Não é permitido beijar aqui dentro. Se quiserem ?car, façam o favor de parar.
  • Que absurdo, protestou o jovem que recebeu e correspondeu ao beijo. Isso é homofobia! Em que mundo que estamos?

Calmamente, Raimundão a?rmou:

- Não tem nada a ver com qualira- gem! Aqui é proibido beijar, só isso.

Pode ser homem com mulher, mu- lher com mulher ou homem com homem. Aqui não é lugar de beijar. Todos que frequentam meu bar sabem disso. Para os turistas, basta ler a placa.

O casal pediu a conta, pagou e foi embora protestando. Antes de ultra- passar o batente deram um beijo mais profundo de língua, bateram os pés no chão, como para deixar até o último pó dos pés no local, mostra- ram a língua para Raimundão e ga- nharam a rua.

A cena não chamou a atenção de todos, pois muitos conversavam dis- traidamente ou estavam distantes do balcão. Para um casal, no entanto, a cena não passou despercebida e gerou um protesto. Carol e Walde- mar, amigos estudantes de Direito, engajados em causas sociais, aborda- ram o velho Raimundão, mesmo sa- bendo das manias dele, pois frequentavam o local havia muitos anos, e disseram: - Dessa vez o se- nhor passou de todos os limites. Per- deu dois clientes e se prepare para perder mais. Veja nossa conta, por favor.

Sem qualquer abalo, Raimundão entregou a conta, recebeu o dinheiro, e disse: - Passem bem! A porta da rua é a serventia da casa!

A jovem e meiga Carol, além de es- tudante de Direito, tinha ingressado numa nova tendência dos nossos tempos e era uma In?uencer, como se autointitulam os que detém o poder de in?uenciar pessoas pelas redes sociais. Fazendo valer seu papel, começou a convocar pessoas pelas redes com a hastag: vamos can- celar o Raimundão. O movimento ga- nhou corpo. No dia marcado, com cartazes contra a homofobia e intole- rância, rumaram para frente do bar do Raimundão. Formou-se um grupo de aproximadamente duas dezenas de pessoas com cartazes, apitos, ban- deiras nas cores do arco-iris. Mais umas dezenas de curiosos se aproxi- maram e alguns já movidos pelo álcool chegaram a gritar: - queima o bar! Joga bosta nele! Vamos quebrar! Aterrorizado, Raimundão, já com seus 76 anos no lombo, rangendo os ossos, esgueirou-se por uma porta la- teral e foi se abrigar na casa de dona Santinha, a três quarteirões dali. Ficou assustado aguardando o tu- multo se desfazer.

A turma do deixa-disso prevaleceu e não tocaram fogo no bar e nem que- braram mesas. Saíram decididos, no entanto, a cancelar o Raimundão da vida cultural de São Luís.

Antes de voltarem para casa, três casais de manifestantes, dentre eles a própria Carol e Waldemar, acompa- nhados de Pedro e Cecília, e mais Na- tuza e Andreia, que eram namoradas, resolveram esticar a noite indo a um bar amigável, como assim chama- vam, na orla do Calhau. Chegaram ao bar Petit Comité (era esse o nome do bar bem transado, onde havia uma placa dizendo que não admitiam qualquer tipo de preconceito no local). Ainda exultantes pelo feito de botarem Raimundão para correr, en- traram como heróis voltando da guerra. Agora era iniciar o planeja- mento do cancelamento social.

Os rapazes sentaram de frente para o balcão, encimado por uma TV onde passava o Programa do Malan- dro, com o som no mínimo volume. As três moças ?caram de costas para o balcão. Um dos rapazes pediu uma Brahma, depois mais uma, e outras e outras e a conversa ?uía animada, com foco nos planos para o cancela- mento. Natuza pediu a palavra e disse que tinha uma questão de enca- minhamento, e falou:

  • companheiros, não basta cancelar Raimundão. Quem continuar fre- quentando o bar é conivente e tem que ser cancelado também. Walde- mar tentou discordar, timidamente, mas o encaminhamento passou.

Quando já estavam bem animados pelo efeito do álcool, adentrou uma velha, muita obesa, aparentando se- tenta e poucos anos, arrastando os pés e com uma certa di?culdade para caminhar. Ela trajava um vestido muito encardido, com alguns rasgos e remendos aparentes, fabricado de chita barata, com ?orais laranja e azuis, parecidos com aqueles usados em cortinas das casas pobres da pe- riferia da Ilha nos anos 80. Os rapazes viram todos os detalhes num relance. Carol, que estava mais próxima da porta, olhou de soslaio, e retornou para a conversa. Puxando uma ca- deira de uma mesa vazia, calma- mente, a velha instalou-se de frente para o balcão, apertando-se entre as mesas dos casais que voltaram da guerra e o próprio balcão. Num gesto quase coreografado, ergueu os bra- ços e começou a levantar o surrado vestido. Em instantes estava com os peitos esparramados na barriga, num mar de adiposidade. Levantou o dedo e também pediu uma Brahma. O gar- çom, um jovem de aproximadamente trinta anos, aproximou-se, disfar- çando o espanto, e perguntou:

  • Qual o seu nome, minha senhora?
  • História, respondeu ela. E o seu?
  • Cristopher, respondeu ele, e arre- matou:
  • A senhora vai me desculpar, mas a senhora está acompanhada por al- guém? Alguém virá para ?car com a senhora? E ela:
  • Não, não, eu moro sozinha. Tenho dinheiro para pagar a conta, se é essa a sua preocupação. Ainda de forma educada, Cristopher falou:
  • Não duvido, minha senhora, mas vendo os trajes que a senhora

usava ao entrar, e que agora foram ti- rados, ?quei preocupado. A senhora está nua! O nosso estabelecimento é amigável com todas as orientações sexuais mas não temos experiência com acolhimento de nudistas, ou na- turistas, se assim a senhora preferir.

A velha História, sem perder a pose, disse ao jovem:

  • Não estou nua. Estou de ?o-den- tal. Olha aqui, olha. Dizendo isso, puxou o ?o-dental do meio das ba- nhas e dos grandes lábios e mostrou ao rapaz, que fez uma cara de assom- bro e disse:
  • Por favor, minha senhora! Não sei lidar com essa situação. A senhoravai precisar se retirar.

A demora do diálogo chamou a atenção da mesa dos guerreiros das boas causas. Ouviram-se risinhos vindos de lá. Waldemar chutou Na- tuza por baixo da mesa, e ela tam- bém soltou um risinho e perguntou, de forma quase inaudí- vel: - quem é essa velha doida? Nin- guém soube. Andreia virou e olhou a velha de topless, ainda sentada, e soltou uma gargalhada estrondosa. Carol, também rindo, completou: deve ter saído da Colônia Nina Ro- drigues!

Dona História levantou-se, dei-

xou o dinheiro da cerveja em cima do balcão e foi embora se arras- tando, como entrou.

Os guerreiros e as guerreiras tro- caram olhares e todos gargalharam ao mesmo tempo. Parado o riso desbragado, Carol emendou:

  • É cada uma! Cada gente sem noção! Aaaa?f

Cristopher sacudiu a cabeça, ten- tando conter o sorrisinho de escár- nio, e concordou com Carol: - É cada gente sem noção. E a doida ainda disse que o nome dela é His- tória! Me poupe! Boa noite, pessoas.


Dr. Adilson Garcia

Dr. Adilson Garcia

Fórum Íntimo – professor doutor em Direito pela PUC- -SP, advogado e promotor de justiça aposentado.



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