A VAMPIRA DE CURITIBA
Madrugada fria, aquela névoa característica de Curitiba que emoldura os canteiros da rua das Flores, ofuscava avisão magní?ca damaischarmosaebelaveredado Brasil: o calçadão daav. XVde Novembro.
Eu caminhava só e o casaco de couro não era su?ciente para pro- tegerdaqueleinvernodaTerrados Pinheiros (Cury = Pinho + Tiba = Terra, em tupi-guarani).
Senti um vulto sinistro me se- guindo. Olhei para trás e só vi minha sombra projetada pelos candeeiros clássicos dos centená- rios postes de ferro estilo colonial que mal iluminam os painéis e cavaminhaorelha.
Seu hálito exalava o Bloody Marycom o mesmo leve toque de enxofre ao ?nal, o mesmo cheiro dasuavagina.
Depoiselamedeuumlevebeijo nos meus lábios e quando senti a ponta da sua língua procurando o céu da minha boca, tive uma sen- sação de gosto de sangue.
Pensei: - é impressão minha, porqueabocaestavamanchadade vermelho do Bloody Mary e isso levou meu cérebro a sugestionar sangue.
O garçom apresentou a conta “spont sua”, sob nossos protestos.
-Lamento, cavalheiro, mas alemão gordo entregou a chave, sabonete e um parde toalhas.
-Café da manhã a partir das 07h30. São 100 “pila” adiantado.
Elaabriuabolseta(eudissebol- seta=bolsapequena, rsss) quetra- zia guardada no sutiã e pagou o pernoite.
Jogou-me na cama e lambeu- me dos pés àcabeça. Depois se le- vantou, pegou gelo no frigobar e preparou um drink de Campari, misturando algumacoisa.
Enquantoeubebiaelameacari- ciava com sua boca sedenta, su- gando com a gula de um marujo regresso do alto marmeus mami- los e depois foi descendo rumo ao mosaicosrococósda Capital Paranaense.
-Quenada, ésó umaimpressão. OPalácioAvenidaestavarepleto de luzes aguardando o dezembro queseaproximava, decoradopara receber uma das mais famosas cantatas natalinas do mundo.
Assim que passei pelo Bondi- nho Leitura, ouvi unspassosmar- cantes de um salto que martelava as pedras portuguesas do calça- dão. Olhei para trás e misteriosa- mente o vulto sumiu e o barulho dos passos cessou.
Um calafrio correu meu espi- nhaço. E não sei por que, veio à minha mente a lembrança do Vampiro de Curitiba, um dos me- lhores contos de Dalton Trevisan. Confesso que sempre invejei Dal- ton, pois desde menino queria ser escritor como ele. Se um dia eu virar escritor, pode saber que a culpae inspiração foi do Dalton.
Vixe! Será que é um vampiro que está me seguindo? Será que o Dalton escreveu esse conto ao andarpelo calçadão da XV de ma- drugadaepassoupelomesmopâ- nico?
Com medo (e com frio) entrei num aconchegante boteco com móveisantigosestilo LuizXV. Sen- tei à mesa num canto lúgubre e pediumconhaque?ambado. Nem esperei aquecere tomei aquelata- lagadacomchamaetudo. Saiufu- maça pelas ventas e a ponta das orelhas aqueceram rapidamente.
Como se surgisse do nada, quando levantei as vistas uma ?- guraestranha, lábiosdebatomcor de ébano, cabelos com franja e al- gumas mechas multicoloridas, umabotaimponentecomumsalto 15 ?no, apalpou meu ombro.
-Oi, gato! Posso sentar à sua mesa e tomar um drinque na sua companhia?
Gaguejei a princípio e ao ?tar aqueleolharpenetrantecomrímel sobrandopelasbeiradaseaquelas pupilasnegrasquepareciamduas jaboticabas, veio um calafrio.
Com aindumentáriaestrambó- tica toda preta e irreverente com mistura de elementos de indie rock, heavy metal e hardcore, pa- reciaumagrunge.
Aquelas franjas tapando os olhos, cabelospretoscomdetalhes coloridos, lembravatambém o es- tilo Emo. Ou seria uma Drag Queen?
Maseramuitolinda, bemesguia e pele bem cuidada, as bochechas pareciam pêssegos.
E eu, macaco velho de bunda pelada, quenãopulaemgalhoseco e nem mete a mão em cumbuca, logo descon?ei porque quando a esmolaé demais o santo logo des- con?a.
-Pois não, sente-se princesa!
-Óh, muito obrigado pela genti- leza. Posso pedirumabebida?
– Garçom, Bloody Mary, please!
O cisma continuou. Fiquei com apulgaatrás daorelha:
-Mademoiselle, posso lhe fazer umapergunta?
-Óh, meu príncipe, lógico que sim. Sóesperoquenãosejaumin- terrogatório tipo policial. Porque vocêtemumacaradepolícia.Você é delegado?
-Ah, não. Bem, sou mais ou menos isso, tô no mesmo ramo. Mas é só uma curiosidade: você é Drag Queen, travesti ou trans? Ou é garotade programa?
-Kkkkk!Lógicoquenão...querver? Enquanto eu olhava incrédulo para os olhos daquele sorriso ma- roto, ela foi entreabrindo o par de coxas roliças e carnudas e com algum esforço levantou a saia de couronaalturadoquadril.Asluzes coloridasquepiscavamdosletrei- ros dos bares da Boca Maldita do outro lado da rua penetravam por aquela caverna escura e re?etiam nospelospubianossedososcorta-
dos no estilo bigode de Hitler.
Pude ver um extasiante monte devênustalhadoaomeiocomum risco tom carmim.
Para tirar a prova dos 9 ela en- costou a cadeira ao lado da minha e levou minha mão sorrateira- mente por debaixo da mesa entre suas pernas e me fez apalpar o botão intumescido e lubri?cado.
-Quis lhe conhecer e ser sua nemquesejaporumanoite. Reco- nheciemtitraços?nos, omodode pegar o copo e beber, o olharvago àbuscadeumeloperdido, aroupa de couro de classe, o relógio de ouro reluzente e um chapéu Pa- namálegítimo inconfundível.
-Você não é qualquer um. Fica comigo, ?ca?
Depois, pegou a minha mão e esfregou o dedo lambuzado no meu nariz.
-Aspire lentamente, cheire bem profundo...
Nossa! Era um aroma de fero- mônio misturado com almíscar e aomesmotempojasmim, comum leve toque de enxofre no ?nal.
Enxofre? Caracas, arrepiei. Mas como já havia escapado de duas Covid-19, esse é um dos sintomas quealgunspacientesquesobrevi- veram sentem conhecido como “parosmia”, consistindonumfenô- meno de “perversão do olfato”.
Noite vem, noite vai e o papo rolouincessantecomtemasvaria- dos enquanto ela arranhava com as unhas dos dedos frios os pelos domeupeito.Vez poroutrasugava levementemeupescoçoemordistemos horários sob pena de pesa- das multas da prefeitura. Temos que fechar.
-Sem problemas, vamos levar uma garrafa de Campari e a gente bebeanossanoiteatéosoldescor- tinar pela rua das Flores e vamos dormir nos bancos da praça da Boca Maldita. Pode ser?
Saímospelanoite Curitibanage- lada, elaquerendoentrardentrodo meu casaco de couro buscando guarida e proteção do vento frio que açoitavanossos rostos.
Seguimosrumoàregiãocentral do meretrício, lá pelas bandas da PraçaTiradentes, ondepululamas putas, michês e trans, hotéis anti- gos, bordéis com luz vermelha e um sem ?m de moradias cabeças de porco.
-Para onde você está me le- vando? – Vamos para uma boate dançar?
-Não, meu príncipe. É surpresa.
Quando passávamos em frente a um pequeno hotel antigo de ar- quiteturaclássicade 2 andares, ela me puxou portaadentro. Subimos uma pequena escada de madeira fazendobarulhodosaltomarcante doscarpindaquelafêmeaempon- derada. Aquele balançar das suas ancas no seu andar, aquele ritmo das pisadas me trouxe vagas lem- branças da cadência do salto que martelavaas pedras darua XVme seguindo antes.
No andar de cima do hotel, um paraíso. Desmaiei de tanto prazer, em ondas de gozo quase in?nitas. Aquilo eraalgo sobrenatural.
Não me lembro de mais nada: apagueicomasforçasesvanecidas como Sansão quando Dalila lhe cortou acabeleira.
No?naldatardedaqueledia, fui acordado pelacamareira.
-Senhor, senhor. Suadiáriaaca- bou às 12h00. O senhor está pas- sando bem?
Abri os olhos e esperei por al- gunsminutosotetoparardegirar.
-Ah, sim. Estou bem. Vou tomar um banho e jádesço. Obrigado.
Olhei para os lados e nenhum vestígio daqueladeusa.
Fui ao banheiro e ao olhar para o espelho vi um coração dese- nhado em vermelho. No centro, a marcadobeijodoslábiosdaminha loucapaixão.
Pensei que era batom. Passei o dedo, cheirei e lambi: erasangue!
Arregalei-me todo e ao olhar parameupescoço, haviamarcade umamordidaedoisfurosprofun- dos najugular.
Escancarei a boca e meus cani- nos estavam um pouco protube- rantes. É só impressão: besteira minha!
Meses depois voltei a Curitiba, revirei a Boca Maldita na espe- rançadereencontrá-la, masfoiem vão.
Jamais vou esquecer da minha docevampira!